sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Conto

Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas.
Deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente.
Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?

A vida era muito dura . Não chegávamos a passar fome ou frio ou nenhuma dessas coisas. Mas era dura porque era sem cor, sem ritmo e também sem forma . Os dias passavam, passavam e passavam, alcançavam as semanas, dobravam as quinzenas, atingiam os meses, acumulavam-se em anos, amontoavam-se em décadas - e nada acontecia.
Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer? Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma outra alegria além de ti. Como pude cair assim nesse fundo poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
A minha cabeça gira. Não, a minha cabeça não gira, a minha cabeça cresce e se derrama pela rua. E eu fico vendo as pessoas caminharem por entre os meus cabelos. No começo, elas têm alguma dificuldade, mas sorriem e vão afastando pacientemente os fios. Mas os fios aumentam e se tornam cada vez mais espessos, instransponíveis. E então as pessoas se enfurecem e apanham foices, tesouras, facas e agulhas e vão cortando e furando os meus cabelos que não páram de crescer sobre a cidade de pessoas enfurecidas.
Esperas uma solução para estes teus olhos que não nasceram assim, verdes. E que dia a dia se farão mais claros até que não consigas mais olhar para o mar, sem pensares que de certa forma essa cor te foi dada por ele. E até que não consigas mais distinguir outra coisa que não seja verde. E até que assa claridade deixe um dia de te cegar, para que mergulhes no escuro irremediável da morte.
Por isso meu ódio cresce. Quando atingir um nível insuportável, não será difícil: basta uma lâmina contra o pulso, nem isso. Uma simples picada de alfinete. Menos até. Talvez aquele menino volte, talvez eu esteja mesmo sozinho, talvez você ache que eu esteja louco. Queria que você entendesse que apenas contei o que realmente aconteceu, e se isso é loucura, quem enlouqueceu foi o real, não eu, ainda que você não acredite. Não tem importância. A história é essa, talvez eu tenha falado mais que eu devia. Mas tenho uma certeza dura de que nem você nem os outros perdem por esperar. Cuidado: eles estão aqui, à nossa volta, entre nós, ao seu lado, dentro de você.


Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva.

Por: Caio Fernando Abreu

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