Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer,  dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas  coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque  nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas.
Deixa eu  te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito  completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e  eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena,  rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou  sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca,  samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que  me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco  derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse  livremente.
Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que  eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria  saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu  sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas  essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez  nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e  desamar era não mais conseguir ver, entende?
A vida era muito dura . Não chegávamos a passar fome ou frio ou nenhuma  dessas coisas. Mas era dura porque era sem cor, sem ritmo e também sem  forma . Os dias passavam, passavam e passavam, alcançavam as semanas,  dobravam as quinzenas, atingiam os meses, acumulavam-se em anos,  amontoavam-se em décadas - e nada acontecia.
Que coisas são essas que  me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer? Tenho  me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso,  perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda  mais minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não  sei o que faço. Não sinto nenhuma outra alegria além de ti. Como pude  cair assim nesse fundo poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero  me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
A  minha cabeça gira. Não, a minha cabeça não gira, a minha cabeça cresce e  se derrama pela rua. E eu fico vendo as pessoas caminharem por entre os  meus cabelos. No começo, elas têm alguma dificuldade, mas sorriem e vão  afastando pacientemente os fios. Mas os fios aumentam e se tornam cada  vez mais espessos, instransponíveis. E então as pessoas se enfurecem e  apanham foices, tesouras, facas e agulhas e vão cortando e furando os  meus cabelos que não páram de crescer sobre a cidade de pessoas  enfurecidas.
Esperas uma solução para estes teus olhos que não  nasceram assim, verdes. E que dia a dia se farão mais claros até que não  consigas mais olhar para o mar, sem pensares que de certa forma essa  cor te foi dada por ele. E até que não consigas mais distinguir outra  coisa que não seja verde. E até que assa claridade deixe um dia de te  cegar, para que mergulhes no escuro irremediável da morte.
Por isso  meu ódio cresce. Quando atingir um nível insuportável, não será difícil:  basta uma lâmina contra o pulso, nem isso. Uma simples picada de  alfinete. Menos até. Talvez aquele menino volte, talvez eu esteja mesmo  sozinho, talvez você ache que eu esteja louco. Queria que você  entendesse que apenas contei o que realmente aconteceu, e se isso é  loucura, quem enlouqueceu foi o real, não eu, ainda que você não  acredite. Não tem importância. A história é essa, talvez eu tenha falado  mais que eu devia. Mas tenho uma certeza dura de que nem você nem os  outros perdem por esperar. Cuidado: eles estão aqui, à nossa volta,  entre nós, ao seu lado, dentro de você.
Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente  pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou  de doer, embora lateje louca nos dias de chuva. 
Por: Caio Fernando Abreu